Desabafo sobre meu maior medo.

Esse não é um daqueles meus textos despretensiosos e fofos, por isso não tem sentido usar as iniciais minúsculas, os parágrafos e frases curtas, os diminutivos e as expressões de linguagem informal. É um desabafo, como muitos dos meus outros textos por aqui. Mas um desabafo sério.

Eu tive aula hoje de manhã. A ideia era pegar um ônibus as 5h30, mas essa hora não tinha amanhecido ainda então era impensável sair andando pelo meu bairro no escuro. Fui de taxi.

Minha aula era em outra cidade e quando acabou, tive que pegar outro ônibus para a cidade dos meus pais. Minha casa fica relativamente perto da rodoviária, então vou andando. O caminho não é o mais seguro do mundo, meus pais sempre ficam apreensivos quando tenho que passar por uma ponte em questão. Mas já fazem três anos que eu faço esse caminho, inclusive algumas vezes tive que passar por ali a noite, e nunca aconteceu nada. Quer dizer, já passei por algumas situações que me deram um pouco de medo. Minha tática sempre é olhar ao redor, mas manter a cabeça baixa e o rosto fechado. Meu passo é apressado e não fico tranquila até chegar perto de uma área mais movimentada.

Hoje eu tava distraída. Saí do ônibus lembrando de um filme que eu tinha visto. O filme tinha algumas cenas machistas e eu tava debatendo comigo mesma algumas questões do feminismo. Tava criando discursos mentais, lembrando de argumentos e fazendo um paralelo com um quadrinho que li ontem sobre o que é ser mulher.

Para subir naquela ponte, tenho que passar por uma rampa de acesso. A rampa é meio isolada, de um lado tem um muro alto que separa o caminho de um terreno cheio de mato e do outro tem um morro com gramado que vai até a estrada. Quando fiz a curva pra entrar na rampa, que imagino que tenha uns 30, 40 metros de comprimento, vi que vinha um cara atrás de mim.

Apesar de ser um acesso importante e um caminho que leva ao centro, na maioria das vezes que passei por ali eu estava sozinha. Ter um homem andando aqueles 40 metros tão perto de mim não me deixou muito segura não, mas como falei antes, eu tava distraída, ainda tava no debate mental sobre feminismo. Segurei a minha bolsa com as duas mãos e lembrei que meu notebook tava na mochila. « O cara parece normal, acho que não vai me roubar aqui », lembro que pensei.

Eu não andei mais do que três metros quando comecei a ouvir uns sussurros. Demorei pra perceber o que tava acontecendo. Demorei pra perceber quais palavras estavam sendo ditas. Apertei meu passo e senti o passo do cara acompanhar o meu, as palavras que ele soltava iam ficando mais claras e o meu medo ia aumentando. Olhei pra frente e ainda tinham pelo menos dois terços do caminho pra percorrer, em subida, sendo que lá em cima também não era o lugar mais seguro. Se acontecesse algo, se o cara quisesse que acontecesse algo, eu não ia ter pra onde fugir. Pensei em voltar o caminho, já que ia chegar mais perto pra um lugar movimentado, mas pra isso eu ia ter que passar pelo cara. Eu olhei pra trás pra ver se tinha alguma chance, e foi só então que eu vi que não eram só os sussurros. O cara me olhava, me chamava, e se masturbava enquanto isso.

Passar por ele realmente foi uma opção descartada. Apertei mais ainda o passo, quase correndo até chegar lá em cima. Meu plano era acenar para os carros e pedir alguma ajuda caso ele viesse atrás. Por uma sorte absurda, ele foi ficando pra trás até que, quando cheguei na ponte, ele já tinha sumido de vista.

Por algum privilégio da minha vida, nunca sofri um abuso ou trauma maior. Sei que o que passei hoje não é nem um por cento do que acontece com milhares de mulheres ao redor do Brasil e do mundo todos os dias. Mas ainda assim, foi desesperador. É desesperador.

No resto do meu caminho pra casa, não consegui respirar direito. Senti meu rosto ficar vermelho, queimar, arder, como se eu estivesse morrendo de vergonha. Vergonha? Vergonha de quê? Me senti um objeto, senti minha liberdade ser privada, senti nojo de mim mesma, dos outros, do mundo. A cada homem que passou por mim, eu me encolhi o máximo que pude. Não consegui organizar meus pensamentos direito, meus sentimentos direito.

Lembro que em um dos momentos de raiva, quando já estava entrando na rua de casa, pensei que não tinha como continuar a vida desse jeito. Como eu ia voltar a olhar pros homens da minha vida? Como é possível continuar a viver sendo que você é vista pela sociedade como um objeto descartável? Como eu ia conseguir olhar pra minha mãe, pra minha irmã, pra minha prima, sabendo que elas já passaram ou que um dia irão passar por esse sentimento tão ruim?

Quando contei pra minha mãe, ela me disse que esses caras eram doentes. Não, eles não são. Nossa sociedade é que é doente. Pra eles, a gente não é nada, a gente não significa nada. Seres que só existem para servir, que só são reféns do prazer alheio. Seres que não têm vontades, quereres, vidas.

Mas, na verdade, a gente tem uma vida. E a gente tem que voltar pra ela, como se nada tivesse acontecido. Tive crise de respiração, de choro, de angústia, mas meia hora depois eu tava sorrindo. Contando da semana. Abraçando minha prima. Fingindo que tava tudo bem. E tava? Não tava? Ta? Não ta? Eu não sei.

 

 

Essa semana assisti uma peça em que a gente queimava todos nossos medos. Em um dos momentos, a gente queimou nosso medo de andar na rua sozinhas só por sermos mulheres. Mas depois a gente teve que voltar pro mundo real. Um mundo de medo.

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